Arnaldo Trindade (Foto revista SÁBADO) |
Arnaldo Trindade
faleceu a 8 de janeiro de 2024 com 89 anos e foi o grande impulsionador das
edições da chamada “música de intervenção” na editora Orfeu. Mas talvez o público
não saiba que ele, o “Senhor Orfeu”, começou a atividade de edição discográfica em 1956 com a publicação de discos de poesia declamados pelos
próprios autores. Gravou assim Miguel Torga, José Régio, Alberto de Serpa, Sophia
de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e outros.
No início
dos anos 60 começou a gravar também música, tendo gravado cantores como Adriano
Correia de Oliveira (ex. Trova do vento que passa) e José Afonso (ex. Cantares do Andarilho),
para além de música mais ligeira como Maria da Fé e o Conjunto António Mafra, por exemplo. Arnaldo Trindade era um empresário, não era revolucionário nem político, mas tinha
apreço por aquilo que era belo. Dizia ele (Visão-História nº 79): “…os músicos
tiveram sempre carta branca para fazer o que quisessem. Eu só não queria
panfletos. Panfletos, não! Poesia autêntica, boa, bem feita, e com uma segunda
linguagem que eles (os censores) não entendessem”. Os discos no princípio só
eram analisados após a publicação e podiam ser apreendidos. Depois, através da “pré-censura”,
os editores eram obrigados a mostrar os textos, o que supunha uma negociação
com a Censura. Mas, diz Arnaldo Trindade, quanto às letras, os censores muitas
vezes “não as entendiam”.
O 25 de
Abril, para Arnaldo Trindade, foi “a maior alegria” da sua vida. Mas reconhece
que os cantores de intervenção perderam qualidade musical na altura devido ao
carácter panfletário de algumas gravações propostas à Orfeu após o 25 de Abril.
E recusou mesmo gravar certas coisas de José Afonso e Adriano porque a linha da
Orfeu não era meter-se na política “pequena”. Por exemplo, em “Foi na cidade do
Sado”, José Afonso implicava com um comício do PPD em Setúbal e em “Se vossa
excelência” Adriano Correia de Oliveira apoiava a greve da empresa Tabopan, em
Amarante. A Orfeu não alinhava neste tipo de intervenção e não gravou estas músicas.
Arnaldo Trindade
editou dois livros de poesia: “Jogos de xadrez e da vida” e “Commedia dell’arte”
e em outubro de 2023 gravou em disco os seus próprios poemas com a sua voz,
como havia feito com os grandes poetas nos anos 50.
Aqui fica
uma das músicas que a Orfeu gravou e que mais impacto teve no pré e pós-25 de Abril,
A morte saiu à rua, de José Afonso, uma homenagem a José Dias Coelho, pintor, morto pela PIDE em 19 de dezembro de 1961.
A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome pra qualquer fim
Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue dum peito aberto sai
O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal
E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu
Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale
À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou
Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim
Na curva da estrada, há covas feitas no chão
E em todas florirão rosas duma nação
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