quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

MÚSICAS DE ABRIL - 5 Arnaldo Trindade, o sr. Orfeu, que editava José Afonso

Arnaldo Trindade (Foto revista SÁBADO)

 


Arnaldo Trindade faleceu a 8 de janeiro de 2024 com 89 anos e foi o grande impulsionador das edições da chamada “música de intervenção” na editora Orfeu. Mas talvez o público não saiba que ele, o “Senhor Orfeu”, começou a atividade de edição discográfica em 1956 com a publicação de discos de poesia declamados pelos próprios autores. Gravou assim Miguel Torga, José Régio, Alberto de Serpa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade e outros.

No início dos anos 60 começou a gravar também música, tendo gravado cantores como Adriano Correia de Oliveira (ex. Trova do vento que passa) e José Afonso (ex. Cantares do Andarilho), para além de música mais ligeira como Maria da Fé e o Conjunto António Mafra, por exemplo. Arnaldo Trindade era um empresário, não era revolucionário nem político, mas tinha apreço por aquilo que era belo. Dizia ele (Visão-História nº 79): “…os músicos tiveram sempre carta branca para fazer o que quisessem. Eu só não queria panfletos. Panfletos, não! Poesia autêntica, boa, bem feita, e com uma segunda linguagem que eles (os censores) não entendessem”. Os discos no princípio só eram analisados após a publicação e podiam ser apreendidos. Depois, através da “pré-censura”, os editores eram obrigados a mostrar os textos, o que supunha uma negociação com a Censura. Mas, diz Arnaldo Trindade, quanto às letras, os censores muitas vezes “não as entendiam”. “Nunca um Orfeu foi proibido”, afirmava Arnaldo Trindade.

O 25 de Abril, para Arnaldo Trindade, foi “a maior alegria” da sua vida. Mas reconhece que os cantores de intervenção perderam qualidade musical na altura devido ao carácter panfletário de algumas gravações propostas à Orfeu após o 25 de Abril. E recusou mesmo gravar certas coisas de José Afonso e Adriano porque a linha da Orfeu não era meter-se na política “pequena”. Por exemplo, em “Foi na cidade do Sado”, José Afonso implicava com um comício do PPD em Setúbal e em “Se vossa excelência” Adriano Correia de Oliveira apoiava a greve da empresa Tabopan, em Amarante. A Orfeu não alinhava neste tipo de intervenção e não gravou estas músicas. 

Arnaldo Trindade editou dois livros de poesia: “Jogos de xadrez e da vida” e “Commedia dell’arte” e em outubro de 2023 gravou em disco os seus próprios poemas com a sua voz, como havia feito com os grandes poetas nos anos 50.

Aqui fica uma das músicas que a Orfeu gravou e que mais impacto teve no pré e pós-25 de Abril, A morte saiu à rua, de José Afonso, uma homenagem a José Dias Coelho, pintor, morto pela PIDE em 19 de dezembro de 1961.


A morte saiu à rua num dia assim

Naquele lugar sem nome pra qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai

E um rio de sangue dum peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial

E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu

Vão dizendo em toda a parte o pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual

Só olho por olho e dente por dente vale

À lei assassina, à morte que te matou

Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim

Que um dia rirá melhor quem rirá por fim

Na curva da estrada, há covas feitas no chão

E em todas florirão rosas duma nação

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